domingo, outubro 15, 2006
O Mestre das Escaramuças, por António Barreto
Eu sei que este post é enorme, mas o texto de António Barreto no PÚBLICO (link) de hoje é tão bom que merece a maior divulgação possível. Por isso aí vai:
O primeiro-ministro tem jeito. Talvez mesmo talento e intuição. Decidiu, desde o primeiro dia, surpreender e tomar a iniciativa. Nunca ir atrás do acontecimento, mas provocá-lo. Para tal, escolheu um método: designar o adversário, denunciar um privilégio, tomar uma medida e atacar com a lei. Tudo isto tendo ao seu serviço uma inédita concentração de poderes e uma imbatível organização de informação, mas reservando sempre para ele o início da operação e o anúncio da surpresa. Juízes, farmacêuticos, professores, deputados, médicos, advogados, reformados, idosos, autarcas e funcionários públicos sucederam-se na honrosa lista das corporações que importava apear dos seus poleiros. Apenas foram poupados os grandes grupos económicos, com os quais o governo entendeu estabelecer bases para uma aliança sólida. Escolas de reduzida dimensão, "maternidades" e equiparadas, centros de urgência médica, tribunais e câmaras municipais foram apenas algumas das instituições visadas pela inesgotável energia reformadora do governo. Em muitos casos, o êxito foi imediato. A aspirina no supermercado foi louvada por quase toda a gente. Obrigar os professores a ficar mais tempo na escola foi visto como um gesto de sabedoria e autoridade. Fazer ajoelhar os autarcas de todo o país foi bem visto e mais bem comentado nos salões e cafés. E muitos foram os que acharam "bem feito" ter-se tirado um mês de férias aos magistrados que, supostamente, gozariam dois ou três. O problema é que chegou a vez dos grandes números: mães e pais, idosos, professores, doentes, pensionistas e funcionários públicos, somados, fazem muita gente. José Sócrates vê-se agora obrigado, não mais a seleccionar alvos de estimação, mas pura e simplesmente a olhar de frente para toda a população.
Até agora, temos estado perante uma estratégia consolidada e deliberada. A autoridade do primeiro-ministro sobre os seus ministros é indiscutível, como talvez não se tenha visto em Portugal há várias décadas. A organização da propaganda e das relações públicas, servida por centenas de profissionais, tem-se revelado impecável. A nomeação de inimigos, privilegiados e culpados, tem seguido um método eficaz. É o género de pessoa que, de manhã, quando se levanta, deve perguntar-se: "Com quem é que me vou meter hoje?". O seu método da acção tem destroçado os adversários políticos: inunda o país de medidas, semeia escaramuças em todas as esquinas e reserva sempre a iniciativa para si. Concede a despenalização do aborto ao Partido Socialista, mas não lhe dará absolutamente mais nada. Vai oferecer o que pode à Igreja Católica, na educação, na segurança social e no património, para compensar a interrupção voluntária da gravidez. A alguns socialistas mais fiéis vai dar uma regionalização, que prepara sub-repticiamente, com o que espera compensar os mortos e feridos das finanças locais. Procura a empatia e a colaboração do Presidente Cavaco Silva, mas sabe o perigo que corre: este, quando lhe disser "não", terá tanto mais autoridade quanto lhe terá repetidamente dito "sim".
Reconheça-se que, entre tantas medidas e no meio desta pletora de intenções, há muito que se aproveite. O controlo da despesa pública, a poupança no gasto, a austeridade nos serviços públicos, o remendo da Segurança Social e a ordem nas escolas, por exemplo, implicam dispositivos e determinações cuja bondade, geralmente imposta pela necessidade, é indiscutível. Mas, com o tempo, tem-se também percebido que a técnica do primeiro-ministro se tem limitado ao superficial. Nunca ir até ao fim parece ser a sua regra. Ferir um pouco tudo e todos, mas nunca ir ao fundo das coisas, pois é aí que se fazem os inimigos irrecuperáveis. A actual reforma da Segurança Social, feita com vinte anos de atraso, é um exemplo interessante: foi obra das mesmas pessoas que, há meia dúzia de anos, fizeram uma outra, para Guterres e Sócrates, considerada suficiente para "cem anos"! É um bom exemplo do que é a superficialidade.
Houve uma altura, aqui há uns meses, em que se chegou a pensar que o primeiro-ministro estava disposto a ultrapassar o efémero e o remendo. Mas agora as ilusões acabaram. A diminuição significativa da função pública e o congelamento dos vencimentos, por vários anos, não serão as suas políticas. A redução drástica das prestações sociais não será obra sua. A alteração radical da política de pescas e de fomento agrícola e hidráulico não terá a sua autoria. A nova política de fomento florestal não será elaborada nem posta em prática por este governo. A entrega definitiva das escolas às comunidades educativas e às autarquias locais não será feita por ele. A modificação da lei eleitoral e a consagração do princípio da eleição directa e nominal não serão realizações suas. Como sua não será a criação de órgãos externos de controlo das universidades. Um código severo de incompatibilidades na acumulação de funções públicas e privadas na educação e na saúde não será aprovado por si. E a proibição de passagem promíscua de cargos políticos para empresas privadas e públicas ou vice-versa não será decretada por ele. Como não será ele que acabará com as nomeações "por confiança política". Nem imporá prazos imperativos aos magistrados judiciais e aos procuradores do ministério público. Não será capaz de acabar com a perpetuidade do emprego público. Nem saberá tornar muito mais flexível o mercado de trabalho, como não desejará dar um pouco mais de garantias aos trabalhadores precários.
Quando monologa, José Sócrates é um homem doce e de aparência convincente. Se contrariado, revela uma rispidez ácida e uma pulsão vingativa surpreendentes. No Parlamento, atinge facilmente um grau de cólera pouco adequada a quem tem ainda de correr um longo caminho, a quem sabe que o mais difícil está para vir. O Mestre das Escaramuças especializou-se em raides súbitos. Não parece preparado para as grandes batalhas. Mas esperemos. Dentro de pouco mais de um ano, com novas eleições à vista, veremos se até o efémero e a superficialidade são ou não sacrificados à demagogia. Como já aconteceu antes. Tantas vezes!
O primeiro-ministro tem jeito. Talvez mesmo talento e intuição. Decidiu, desde o primeiro dia, surpreender e tomar a iniciativa. Nunca ir atrás do acontecimento, mas provocá-lo. Para tal, escolheu um método: designar o adversário, denunciar um privilégio, tomar uma medida e atacar com a lei. Tudo isto tendo ao seu serviço uma inédita concentração de poderes e uma imbatível organização de informação, mas reservando sempre para ele o início da operação e o anúncio da surpresa. Juízes, farmacêuticos, professores, deputados, médicos, advogados, reformados, idosos, autarcas e funcionários públicos sucederam-se na honrosa lista das corporações que importava apear dos seus poleiros. Apenas foram poupados os grandes grupos económicos, com os quais o governo entendeu estabelecer bases para uma aliança sólida. Escolas de reduzida dimensão, "maternidades" e equiparadas, centros de urgência médica, tribunais e câmaras municipais foram apenas algumas das instituições visadas pela inesgotável energia reformadora do governo. Em muitos casos, o êxito foi imediato. A aspirina no supermercado foi louvada por quase toda a gente. Obrigar os professores a ficar mais tempo na escola foi visto como um gesto de sabedoria e autoridade. Fazer ajoelhar os autarcas de todo o país foi bem visto e mais bem comentado nos salões e cafés. E muitos foram os que acharam "bem feito" ter-se tirado um mês de férias aos magistrados que, supostamente, gozariam dois ou três. O problema é que chegou a vez dos grandes números: mães e pais, idosos, professores, doentes, pensionistas e funcionários públicos, somados, fazem muita gente. José Sócrates vê-se agora obrigado, não mais a seleccionar alvos de estimação, mas pura e simplesmente a olhar de frente para toda a população.
Até agora, temos estado perante uma estratégia consolidada e deliberada. A autoridade do primeiro-ministro sobre os seus ministros é indiscutível, como talvez não se tenha visto em Portugal há várias décadas. A organização da propaganda e das relações públicas, servida por centenas de profissionais, tem-se revelado impecável. A nomeação de inimigos, privilegiados e culpados, tem seguido um método eficaz. É o género de pessoa que, de manhã, quando se levanta, deve perguntar-se: "Com quem é que me vou meter hoje?". O seu método da acção tem destroçado os adversários políticos: inunda o país de medidas, semeia escaramuças em todas as esquinas e reserva sempre a iniciativa para si. Concede a despenalização do aborto ao Partido Socialista, mas não lhe dará absolutamente mais nada. Vai oferecer o que pode à Igreja Católica, na educação, na segurança social e no património, para compensar a interrupção voluntária da gravidez. A alguns socialistas mais fiéis vai dar uma regionalização, que prepara sub-repticiamente, com o que espera compensar os mortos e feridos das finanças locais. Procura a empatia e a colaboração do Presidente Cavaco Silva, mas sabe o perigo que corre: este, quando lhe disser "não", terá tanto mais autoridade quanto lhe terá repetidamente dito "sim".
Reconheça-se que, entre tantas medidas e no meio desta pletora de intenções, há muito que se aproveite. O controlo da despesa pública, a poupança no gasto, a austeridade nos serviços públicos, o remendo da Segurança Social e a ordem nas escolas, por exemplo, implicam dispositivos e determinações cuja bondade, geralmente imposta pela necessidade, é indiscutível. Mas, com o tempo, tem-se também percebido que a técnica do primeiro-ministro se tem limitado ao superficial. Nunca ir até ao fim parece ser a sua regra. Ferir um pouco tudo e todos, mas nunca ir ao fundo das coisas, pois é aí que se fazem os inimigos irrecuperáveis. A actual reforma da Segurança Social, feita com vinte anos de atraso, é um exemplo interessante: foi obra das mesmas pessoas que, há meia dúzia de anos, fizeram uma outra, para Guterres e Sócrates, considerada suficiente para "cem anos"! É um bom exemplo do que é a superficialidade.
Houve uma altura, aqui há uns meses, em que se chegou a pensar que o primeiro-ministro estava disposto a ultrapassar o efémero e o remendo. Mas agora as ilusões acabaram. A diminuição significativa da função pública e o congelamento dos vencimentos, por vários anos, não serão as suas políticas. A redução drástica das prestações sociais não será obra sua. A alteração radical da política de pescas e de fomento agrícola e hidráulico não terá a sua autoria. A nova política de fomento florestal não será elaborada nem posta em prática por este governo. A entrega definitiva das escolas às comunidades educativas e às autarquias locais não será feita por ele. A modificação da lei eleitoral e a consagração do princípio da eleição directa e nominal não serão realizações suas. Como sua não será a criação de órgãos externos de controlo das universidades. Um código severo de incompatibilidades na acumulação de funções públicas e privadas na educação e na saúde não será aprovado por si. E a proibição de passagem promíscua de cargos políticos para empresas privadas e públicas ou vice-versa não será decretada por ele. Como não será ele que acabará com as nomeações "por confiança política". Nem imporá prazos imperativos aos magistrados judiciais e aos procuradores do ministério público. Não será capaz de acabar com a perpetuidade do emprego público. Nem saberá tornar muito mais flexível o mercado de trabalho, como não desejará dar um pouco mais de garantias aos trabalhadores precários.
Quando monologa, José Sócrates é um homem doce e de aparência convincente. Se contrariado, revela uma rispidez ácida e uma pulsão vingativa surpreendentes. No Parlamento, atinge facilmente um grau de cólera pouco adequada a quem tem ainda de correr um longo caminho, a quem sabe que o mais difícil está para vir. O Mestre das Escaramuças especializou-se em raides súbitos. Não parece preparado para as grandes batalhas. Mas esperemos. Dentro de pouco mais de um ano, com novas eleições à vista, veremos se até o efémero e a superficialidade são ou não sacrificados à demagogia. Como já aconteceu antes. Tantas vezes!