sexta-feira, outubro 27, 2006

 

A DEGRADAÇÃO DA PRIVACIDADE E DA INTIMIDADE

Tudo começou no Expresso de 14 de Outubro, há apenas dez dias. É verdade que já havia nas revistas do coração e nos tablóides uma exploração do mesmo tema, mas nunca tinha chegado à imprensa que se pretende séria e responsável. Para se perceber como é que a coisa funciona, basta seguir a sequência: no dia 14, o Expresso titula na primeira página "Casal Sócrates pelo sim", referindo-se à presença de José Sócrates enquanto secretário-geral do PS e uma jornalista descrita como sua "namorada" num debate sobre o aborto. O título era completamente abusivo: a presença dos dois na sala e o facto de fazerem intervenções sobre o mesmo tema era mais que justificado pela circunstância de ambos, cada um de per se, como indivíduos, terem revelado interesse pelo tema e pela causa e não por serem um "casal" que era o que o título queria dizer num mecanismo puramente tablóide. Acresce que, quer um, quer outro, independentemente das relações que tenham ou não tenham, são pessoas que mantêm sobre a sua vida privada uma sadia reserva que cada vez menos se observa em pessoas sujeitas a uma exposição pública. O título do "casal" não tinha qualquer relevância jornalística, destinava-se apenas a alimentar o voyeurismo de um público que respeita pouco ou nada da privacidade alheia. Não havia um átomo de interesse público em tal "revelação", ou sequer na sugestão ofensiva para a individualidade de cada um, e aqui obviamente mais ofensiva para a mulher do que para o homem, de que ela vale mais como parceiro de um "casal", do que pelo seu mérito próprio.Os jornalistas do Expresso não podiam deixar de saber o que estavam a fazer. Quem conhece os mecanismos da comunicação e a selvajaria deontológica em que está hoje mergulhada sabe muito bem que, quando um jornal de "referência" faz aquele título, abre as comportas a uma enxurrada que, a partir da intromissão de privacidade inicial, normaliza o delito. O Expresso deu legitimidade a que todos pudessem voltar a atenção do seu voyeurismo, do seu machismo, para o "casal", neste caso em particular para a "namorada". E nos últimos dez dias a enxurrada do lixo tablóide aberta pelo Expresso levou outra vez todas as revistas do coração a pegar no mesmo assunto, agora já livres do gueto inicial onde estavam acantonadas e mais à vontade para irem mais longe, e a imprensa séria a colocar-se ao mesmo nível. Hoje [ontem], no momento em que escrevo, a Focus tem como título da primeira página "Conheça a namorada do 1.º ministro", e a procissão ainda vai no adro.Insisto que não há aqui qualquer elemento de interesse público, nada que justifique que um jornal assim proceda. Não se trata de usar recursos do Estado indevidamente, não se trata de passar segredos a uma potência estrangeira, não se trata de cometer qualquer crime, trata-se de se viver como se pretende, mesmo tratando-se do primeiro-ministro, que sempre foi reservado na sua vida privada, e da "namorada", que não sei se o é ou não nem isso me interessa, que também tem sempre preservado as suas relações da curiosidade pública. Trata-se de duas pessoas que não podem em nenhuma circunstância ser acusadas de se andarem a exibir e, bem pelo contrário, pretenderam sempre defender a sua privacidade com a máxima reserva e a quem esta exposição forçada e gratuita notoriamente incomoda. Isso deveria ser respeitado, mas não é.O facto de ter sido o Expresso a trilhar este caminho revela uma tendência preocupante da comunicação social portuguesa para desrespeitar direitos de privacidade (já quase todos violados repetidamente pelas revistas cor-de-rosa) e da intimidade (violados no mundo do espectáculo e da televisão, muitas vezes com o consentimento dos próprios, que encontraram na exposição da sua privacidade um modo de vida, mas que é só uma questão de tempo até chegar a todos, queiram ou não).A banalização da violação da privacidade e da intimidade vive do conúbio entre o novo mundo das revistas do coração, cada vez mais agressivas, com a generalização das fotografias tiradas na via pública sem autorização por paparazzi e "cidadãos-jornalistas-tablóides", e a progressiva infecção destas práticas pela imprensa séria, daí a importância do título do Expresso. Neste processo participam muitos voluntários do mundo do espectáculo e cada vez mais gente de outros mundos, inclusive da política. Fazem mal, e quase sempre arrependem-se, tendo muitas vezes que fazer o exercício público de arranque da pele da tatuagem em que escreveram, como num cartaz, o nome do amor eterno que durou um mês.A verdade é que ainda há muita gente para quem a defesa da privacidade e da intimidade são elementos essenciais da sua dignidade e da dignidade dos outros, muita gente que se respeita a si próprio para gostar de ter e viver no seu espaço de liberdade. Estou a imaginar o encolher de ombros e o sibilino, "devem ter alguma coisa a esconder...", pretendendo-se criminalizar a defesa da privacidade, atribuindo-a sempre um mundo de culpa clandestino. Mas é isso mesmo, têm alguma coisa a esconder para poderem ter liberdade de viver como querem, para serem senhoras da sua vida. São cada vez mais uma minoria em extinção, face aos maus hábitos das gerações antigas habituadas à coscuvilhice e ao boatério e das mais novas que praticam a "aldeia global" com todos os inconvenientes da "aldeia", onde todos se conhecem. As gerações do telemóvel e da Internet anónima crescem sem qualquer respeito pela privacidade e intimidade, como se vivessem num reality show. São eles que não perceberam que, ao aceitar um telemóvel com GPS ou com vídeo, aceitam ser controlados com eficácia. Não querem saber, cresceram assim, ninguém os educou para a reserva de si próprios. Serão excelentes clientes para os psiquiatras, quando tiverem dinheiro para os pagar.Uma sociedade em que haja um putativo direito de saber tudo e em que ninguém tenha o seu espaço de intimidade e privacidade defendido, mesmo admitindo uma restrição razoável por razões de interesse público, e só por essas, para os detentores de cargos electivos, é uma sociedade totalitária. Nos últimos dias deram-se mais alguns passos para que, na cultura comunicacional dominante em Portugal, a dignidade do indivíduo fique mais frágil, assim como a liberdade de todos.

Pacheco Pereira in Público de 26 de Outubro

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