domingo, setembro 10, 2006

 

O dia em que se calhar conheci Naguib Mahfouz


Foi em Mênfis, à sombra de uma palmeira com vista para a estátua deitada de Ramsés II, que Hassan fez a sua proposta, num português de sotaque imperceptível: “Queres conhecê-lo”?
Conhecer quem? Ramsés II? Tinha ouvido falar na eficiência dos guias egípcios, mas isto soou exagerado. Afinal, o faraó morreu há mais de 3.500 anos. Hassan expeliu uma nuvem de fumo azul e sem tirar da boca o bico do narguilé esclareceu tudo, apontando com o queixo para o livro que eu tinha entre mãos: “Conhecer o Naguib Mahfouz”. Pareceu-me que ele tinha tido a vontade de me chamar “idiota” mas refreou-se, quem sabe a pensar numa gratificação gorda em libras egípcias.
Não acreditei muito que aquele Hassan, fumador de “sheesha”, guia encartado das pirâmides, vendedor de tapetes persas nas horas vagas e grande apreciador de frango e churrasco com piripiri (gosto que tinha adquirido durante uma passagem infrutífera de dois anos pelas cadeiras do Instituto Superior Técnico de Lisboa) conhecesse o vencedor do prémio Nobel da Literatura de 1988.
Ao fim de uma semana no Cairo, eu tinha aprendido a dar um desconto muito grande às coisas que Hassan garantia ter feito. Havia discrepâncias nas histórias que contava à hora do chá, entre baforadas de tabaco com cheiro a maçã. Era fácil perceber que Hassan não tinha idade para ter combatido os isrealitas na guerra do Seis Dias ou para ter conhecido pessoalmente Gamal 'Abd-al-Nasser, como afirmava. A sua amizade com Omar Sharif era coisa também para levantar dúvidas, apesar da fotografia amarelecida em que aparecia por detrás do Dr. Jivago, numa mesa de Bridge. A única história que me parecia credível era aquela em que garantia ter sido tradutor-intérprete do treinador português Manuel José, campeão do Egipto ao comando do Al-Ahly. A maneira como imitava a voz esganiçada do técnico a dar ordens aos jogadores não deixava grandes dúvidas.
Hassan batia no peito e jurava que conhecia Mahfouz e acabou por me convencer. Meti na mochila as versões em inglês da “Viela de Midaq” e da “Trilogia do Cairo” e deixei-me conduzir até ao mercado Khan el Khalili, aquela hora da tarde quase vazio de turistas. O muezzin já chamava para penúltima oração do dia quando entrámos num restaurante de mesas douradas e azulejos nas paredes. Na ponta de um sofá, um velhinho vestido com uma espécie de cabaia chinesa sorvia um chá de menta. Olhei para a fotografia na contracapa do livro. Olhei para o velhinho, que piscava os olhos por detrás de uns óculos redondos. Era ele. Era Naguib Mahfouz. Ou, pelo menos, alguém muito parecido. Um homem com um avental cheio de nódoas começou a enxotar-nos para fora do restaurante, não dando tempo sequer de dirigir a palavra ao suposto cronista do Cairo. Hassan pediu-me cem libras e regressou ao restaurante, deixando-me à deriva no Khan el Khalili. Voltou um quarto de hora depois, com más notícias. Mahfouz não ia receber-me, não ia conceder nenhuma entrevista, não ia sequer assinar os livros que levava na mochila. Mahfouz não tinha nada para mim a não ser a morada de um familiar dele que vendia papiros. Hassan ria. E eu fiz de conta que achei graça.

(PÚBLICO)

Naguib Mahfouz morreu no Cairo, no dia 31 de Agosto. Tinha 94 anos.

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