sábado, março 11, 2006

 

O ESPELHISMO

Salvo erro, foi Eugénio Lisboa quem afirmou ser quase impossível ficar indiferente, perante uma doentia, cobarde e ridícula tendência portuguesa para estar bem com todos. Em mais nenhuma parte do mundo existem tantos amigos de tanta gente.
Por muito que se insultem e traiam, seja em particular ou em público, dois portugueses, quando se encontram, desfazem-se em desculpas: Aquilo foi uma precipitação... eu gosto muito de si, sabe ?
Esperamos é que se a tendência se mantiver, não se caia na tentação de mandar escrever às vítimas, cartas como aquela tão célebre, que recebeu Lord Kimberley: Ex.mo Senhor: amanhã tencionamos matá-lo. Mas fazemos questão em dizer-lhe, que não veja nisso nada de pessoal.
Vem isto a propósito de uma ideia central: embora a Política corporize jogos de conflitos e de interesses, de classes e de ideologias, é no seu íntimo um jogo do erro e da verdade. Por outras palavras, é vital não nos enganarmos em Política.
Apesar dos riscos, porque neste domínio roça-se constantemente o cinismo ou o ridículo - e este género não admite qualquer forma de vulgaridade, de banalidade ou de frivolidade -, este fenómeno permite-nos compreender que a Política é uma arte e não simplesmente uma profissão.
Embora seja um erro desprezar aqueles que exercem bem a sua profissão, não deixa de ser verdade que, em Política, tendo em conta o seu objectivo, a mediocridade é mais prejudicial do que noutra carreira qualquer.
Também aqui, nada é mais pernicioso do que a vaidade, a qual, como demonstra Max Weber, se transforma em embriaguez do sensacional e do interessante e impede que o Homem se mantenha à distância necessária para que deixe de agir sobre si próprio, no seu recolhimento, em face da desordem dos acontecimentos que, precisamente, lhe compete dominar.
A verdadeira responsabilidade política consiste, portanto, numa confiança intranquila, num risco não garantido, numa determinação sem certeza...
A política exige coragem. E como ensinou Espinosa, a coragem implica que se corra um risco a que nem todos, por receio, querem expôr-se.
Mas a verdade é que alguém tem que o correr, para que o medo das ideias e dos princípios seja banido, um dia, das consciências.
Afirmar serenamente e com determinação a coragem moral e intelectual, é hoje um imperativo de quem preza, acima de tudo, a sua própria dignidade.
Ética, convicção e responsabilidade afirmam-se, assim, como princípios e valores complementares, profundamente enraízados, para que o pensamento e a acção política não se reduzam àquilo que Weber designou por odres cheios de vento, que não sentem nada do que estão a fazer, mas que unicamente se incendeiam com sensações românticas.
Basta ultrapassar um pouco o limite estreito do quotidiano para constatar, com indignação, a que velocidade alguns abandonam todas as posições, de que ainda ontem não queriam abrir mão.
Aquilo que a consciência política considerava ainda há pouco indecente, é hoje comummente desculpado, para ser amanhã aceite e tornar-se, decerto, um modelo, depois de amanhã.
É a estáctica da banalidade, ancorada na moral de café, na auto-satisfação estereotipada, numa estética arrotiva, que desemboca no optimismo enganoso da mais baixa interpretação do jogo político.
Contudo a exigência permanece implacável: a política tem de se ligar, cada vez mais, à ideia de serviço público e de solidariedade voluntária. Só assim a vida democrática poderá ganhar, sem cair na mediocridade do predomínio aparelhístico, tão lucidamente analisado por Ortega y Gasset : quantos señoritos satisfechos nos rodeiam ?
É tempo de afirmação com coragem intelectual: ou defender uma democracia limpa e séria, ou deixar conspurcar, em nome de ideias há muito abastardadas, o que resta das convicções autênticas, no meio de um charco em que a lama cresce e ameaça submergir os que nela escorregam.
Por isso a acção política exige mais determinação e menos calculismo.
Dito de outra maneira: a sua nobreza não consiste na uniformização, mas antes na diferenciação. É a resistência ao status quo, a busca do novo...
E o julgamento far-se-à, agora e no futuro, pela sintonia que terão revelado com a marcha do tempo ou, pelo contrário, os que apenas serão epifenómenos do romance do poder.
Como diria o Prof. Adriano Moreira, trata-se, afinal, de modificar o espelho.

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