quarta-feira, janeiro 18, 2006

 

Levitt


Sou avesso a gurus, sejam de que tipo for. E desconfio dos economistas. Mas este livro de Steven Levitt e Stephen Dubner (não sei se há tradução portuguesa, mas espero ardentemente que sim) convenceu-me. Levitt não é um economista como os outros. Não vive no mundo da lua, nem faz malabarismos com números. Prefere colocar perguntas pertinentes e depois desunha-se para encontrar respostas que façam sentido e que sejam compreensíveis pelo comum dos mortais. Há uns dois anos escrevi no PÚBLICO um texto sobre ele. Reli-o há pouco e acho que continua actual. Por isso tenham lá paciência, mas vou republicá-lo. Eu sei que é grandote, mas com um bocadinho de boa vontade chega-se num instante à última linha.


Embirrações e bom senso
Eu não tenho um tio Olavo, como o brasileiro Edson Athaíde, mas já tive um tio Jaime, de quem gostava muito. Tal como o tio Olavo, a quem o publicitário que conduziu em 1995 a campanha vitoriosa de António Guterres recorre sempre que está com falta de assunto, também o meu tio Jaime era dado a aforismos. A aforismos e a embirrações. Quando tomava algo ou alguém de ponta, era capaz de andar anos e anos a alimentar uma antipatia surda, expressa em rosnidos ou frases assassinas.
Os economistas eram uma das embirrações mais duradouras do meu tio Jaime. Conta-se na família que ele perdeu uma pequena fortuna com as acções da EDP, compradas por conselho de um economista durante a segunda fase da privatização da empresa. A partir dessa altura, desenvolveu um desprezo profundo pelo trabalho desta classe profissional, indo ao ponto de pôr em causa a sua base científica. "A economia está para a verdadeira ciência assim como a astrologia está para a a astronomia", ouvi-o repetir vezes sem conta ao longo dos últimos anos.
A frase nem sequer é original, como descobri ao ler um romance de David Lodge em que ele dizia que "a ginástica está para o verdadeiro desporto como a masturbação está para o sexo". Com os seus "gurus" da moda e correntes de pensamento que brotam todos os dias como cogumelos, a economia (e disciplinas afins como gestão ou marketing) transmitem por vezes ao cidadão comum a ideia de alguma falta de exactidão. Dizia o tio Jaime que se juntássemos dois economistas na mesma sala e colocássemos a ambos a mesma questão, obtinhamos pelo menos quatro respostas diferentes. No mínimo.
Vem isto tudo a propósito do economista Steven Levitt, cujo perfil foi traçado pela revista brasileira Veja de 21 de Janeiro, na sequência de uma extensa reportagem publicada no Verão do ano passado pelo New York Times Magazine. Aos 35 anos, Levitt é um economista diferente. A sua área de estudo é a chamada "economia empírica", dominada pelo bom senso, na qual temas do quotidiano como a criminalidade, a discriminação racial ou a corrupção têm primazia sobre défices públicos, taxas de juro ou o índice Dow Jones. Mais do que um economista, Levitt é um cientista social, que combina a rigorosa recolha de dados com uma análise posterior despida de preconceitos. As suas investigações inovadoras valeram-lhe a medalha Clark, concedida de dois em dois anos pela Associação Americana de Economia e pela Universidade Vanderbilt, um excelente prenúncio para um eventual Prémio Nobel. Até hoje, 11 dos 28 agraciados com a medalha Clark ganharam o Nobel, entre os quais o economista Milton Friedman, um dos "gurus" dos chamados "Chicago Boys".
Acredito que o tio Jaime ia gostar de Steven Levitt. Alguns dos seus trabalhos mais conhecidos escapelizam temas como a criminalidade juvenil, a discriminação racial, os casamentos e os divórcios e até a corrupção nos torneios de Sumo, o desporto nacional japonês. Mas nenhum trabalho teve tanto impacto como o estudo sobre a legalização do aborto e a criminalidade ("The Impact of Legalized Abortion on Crime."). Levitt cruzou dados estatísticos recolhidos nos Estados Unidos da América, e chegou a duas conclusões terríveis: crianças indesejadas, de lares desfeitos, têm maior tendência para se envolverem em actos criminosos; a criminalidade é mais baixa nos estados em que a liberalização da prática da interrupção voluntária da gravidez ocorreu há mais tempo. Ou seja: mais abortos, menos crimes.

Esta frase é no mínimo inquietante e as suas implicações morais e éticas são muitas e extremamente delicadas. O próprio Levitt confessa que não tem a menor simpatia pelo aborto, no documento que pode ser acessado na Internet através da página oficial do economista (http://www.src.uchicago.edu/users/levit/).
Portugal não é a América, felizmente. Mas o estudo de Levitt merece ser discutido, agora que a eventual despenalização da interrupção voluntária da gravidez volta a estar na ordem do dia. No final do dia, tudo se resume a uma questão íntima, pessoal, de consciência. Mas é sempre melhor decidir quando se está o mais bem informado possível. Apesar de toda a sua rabugice, suspeito que o meu tio Jaime estaria de acordo com esta afirmação.

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