terça-feira, novembro 15, 2005

 

Arnaldo Jabor

(Um texto de Jabor, sobre o Brasil, que também serve para Portugal - sugestão de J. Bastos)

Eça descreve nossa crise há 134 anos

A crise da corrupção revolucionária anda tão rápida que escrevi um artigo no sábado e no domingo estava arcaico. Rasguei. É duro lançar críticas e alertas e ver que tudo se desmancha no ar. E me lembrei então das “Farpas”, os textos de juventude de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, esculachando a estupidez portuguesa. Nesses panfletos de jornal, aprendi o que era crítica social e de costumes. E lembrei também que Eça de Queiroz nasceu em 25 de novembro de 1845 — daqui a uma semana. Assim, resolvi escrever de novo sobre ele. Esse homem foi a maior paixão de minha vida. Com ele aprendi tudo: minha pobre escritura, a importância do humor, do ritmo do texto e muito sobre a nossa ridícula loucura ibérica.

Quando era garoto, 13, 14 anos, já o lia. E amava-o tanto que — acreditem — me postava na porta do Colégio Santo Inácio, na hora da saída, para ver passar um homenzinho da vizinhança ali de Botafogo que era um sósia de Eça. Quem seria? Um bancário, um contador, quem? Tinha o rosto enfezado por um fígado ruim (como o Eça), que lhe franzia a boca num escárnio risonho. Tinha a mesma pastinha de cabelo sobre a testa curta, o olho rútilo, o mesmo bigode, o gogozinho de pássaro, os braços de cegonha, a palidez biliosa. Só lhe faltava o monóculo cravado no olho irônico. Vê-lo passar me encantava como diante de um ressuscitado.

Eu era assim em 1957. Aos 13 anos, descobri um livro roído de traças na casa de meu avô: “O primo Basílio”, que minha avó tentou proibir (“Isso não é para criança!...”). Li-o, claro, e minha vida mudou. Era como se toda a névoa confusa da infância, minha família difícil de entender, vagas tias, vultos, rezas, tristes salas de jantar, secos padres jesuítas, tivesse subitamente se dissipado. O mundo ficou claro, através das personagens de Eça. Ali estavam todos os tipos que eu conhecia, ali estavam explicados os arrepios de horror diante do teatrinho pequeno-burguês do Rio. O primo Basílio chegava com sua vaidade brutal e me explicava os cafajestes brasileiros, o padre Amaro me decifrava a tristeza sexual das clausuras do colégio jesuíta, o Conselheiro Acácio era a burrice solene de professores e políticos, Damaso Salcede espelhava centenas de mediocridades gorduchas, Gonçalo Ramirez era o frágil caráter de hesitantes como eu e tantos outros. E vinha Thomaz de Alencar com sua literatice melancólica, vinha o banqueiro Cohen, esperto e corno, sentia a sensualidade da Condessa de Gouvarinho, flutuava no ar o cheiro enjoado da Titi Patrocínio da “Relíquia” e, claro, as coxas de Adélia, sem falar no supremo frisson do famoso minette do primo Basílio na “Bovary” Luiza (razão básica da proibição alarmada de minha avó). E não só o desfile dos medíocres, mas as fileiras dos heróis ecianos: Carlos da Maia, João da Ega, Jacintho de Tormes, Fradique Mendes — cultos, elegantes, ricos e irônicos corrosivos. Eça me dava a alma viva do século XIX, atacando a mediocridade portuguesa endêmica, os sebastianistas de secretaria, os burocratas pulhas, os melancólicos de charutaria, os políticos demagogos, a burrice épica de um Pacheco ou do Conde de Abranhos — que fartura! Era uma sociologia ficcional de nosso destino de fracassados.

Até hoje, quando vejo, por exemplo, a TV Câmara ou a Senado, eu penso: será que esses caras aí na CPI nunca leram Eça de Queiroz? Nunca ninguém viu uma caricatura, ninguém leu Rabelais, ninguém viu Daumier, Hoggarth, Goya, ninguém leu Balzac, Flaubert, Swift? Não. Nada. O brasileiro navega tranqüilo, intocado em sua vaidade estúpida. E os corruptos, em sua impávida sordidez.

A velha comparação entre Machado de Assis e Eça de Queiroz nunca me atingiu. Eu sempre preferi o português ao nosso grande mulato. “Ah... porque o Machado é bem mais sutil!...” — (diz-se) comparando-se, por exemplo, Capitu à Luiza do “Primo Basílio” (que o próprio Machado, ciumento, acusou de plágio da “Eugenie Grandet”). “Ahhh!... porque o Machado tem mais níveis de significação, mais complexidade psicológica etc e tal...” Tudo bem... O grande Machado atingiu subtons que Eça nem tentou, por escolha. Machado é mais inglês; Eça é mais francês. Saído das costelas de Flaubert, Balzac e Zola, Eça funda uma literatura caricatural contra as perdidas ilusões ibéricas, com um riso deslavado, com uma proposital “falta de sutileza” que resulta depois sutilíssima. Eça cria um realismo quase carnavalizado, sem anseios de transcendência. Machado é mais, digamos, “nauseado”. Deixa-se envolver por um pessimismo que o claro riso de Eça recusa. É verdade que as personagens de Eça não são tão “livres” quanto em Machado. Mas seu estilo , mesmo povoado de grotescos óbvios, tem uma grandeza flaubertiana rara. O “tipo” eciano não tem uma grande “complexidade”, mas isso talvez seja o que nossa mediocridade social merece. Não reconhece o “sujeito” com uma psicologia idealizada. Somos mesmo “tipos”. Como em seu neto Nelson Rodrigues, há nele uma superficialidade “profunda”, muito atual neste tempo em que os valores idealizados caíram no chão. Neste sentido, Eça é um escritor político, hoje, quando a política virou aqui uma patologia em plena crise “psiquiátrica”. Vejam se este trecho das “Farpas” não é sob medida para nós:

“O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Não há princípio que não seja desmentido nem instituição que não seja escarnecida. Já não se crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas idéias aumenta a cada dia. A ruína econômica cresce, cresce, cresce... A agiotagem explora o juro. A ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número das escolas é dramático. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do país. Não é uma existência; é uma expiação. Diz-se por toda a parte: ‘O pais está perdido!’.”

Eça escreveu isso, em 1871.

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