terça-feira, março 15, 2005
A propósito do novo código da estrada - parte II
É segredo?
Faltavam dez dias para o meu exame de condução. O meu primeiro instrutor – Senhor Silva - era uma homem baixinho, miudinho, de bigodinho, a contar os dias para chegar à reforma. Estava quase.
Usava sapatos Ecco, algumas vezes utilizados para travar os meus ímpetos rodoviários. Na nossa primeira aula fez questão de me explicar teórica e minuciosamente como funcionavam as mudanças e o motor do carro. Depois as aulas foram iguais. Mais rua, menos rua, bem nos arrabaldes da cidade, longe da confusão. Depois, ao fim-de-semana, auto-estrada, via de cintura interna, marginal da Foz do Douro.
Um dia comentei: o meu instrutor, ao sábado, faz-me conduzir até à Foz, manda-me parar o carro e sai. Regressa vinte minutos depois e a aula está no fim. Deve andar indisposto, com algum problema, pensei. Eu enfiada no carro. Ele a caminhar, lentamente, mãos atrás das costas. Entrava, cabisbaixo e dizia: siga.
- Ou conduz muito mal e o instrutor enjoa e tem de ir apanhar ar ou algo está errado nessas paragens na Foz, disseram-me, os funcionários, entre-olhando-se. Parecia um episódio familiar na secretaria da Escola de Condução.
Obviamente que acreditei, piamente, na primeira hipótese. Desanimei.
- Vamos trocar de instrutor. Peça isso, por escrito, que é melhor. Como se fosse iniciativa sua. Está a compreender? Vá por mim. É melhor, dizia-me a Senhora Dona Odete, levantando as sobrancelhas, acima do aro dos óculos.
Acatei o conselho e, na aula seguinte, aparece-me um Senhor Fernando, alto, moreno, todo perfumado. Vivaço nas palavras e nos gestos. Por momentos, achei que íamos entrar numa corrida de automóveis, dada a sua determinação e genica.
-Ora vamos lá. A ver o que vale. Cinto. À direita.
As indicações telegráficas continuaram. Até ao momento de estacionar, numa descida, entre dois carros. Transpirei por tudo que era poro. Não imaginava como fazer aquilo. O carro iria para todo o lado, menos para trás. Menos para aquele lugar balizado por dois automóveis.
- Então! Vamos lá. Quando é o exame?
- Daqui a dez dias, respondi, voz sumida, nervosa.
- Nem daqui a dez semanas! Então não consegue estacionar o carro?
No fim da aula, o Senhor Fernando fez o diagnóstico: eu só sabia andar para a frente. Logo, ou eu estava disposta a um esforço suplementar ou era melhor desistir do exame. Nos dias seguintes fiz a recruta rodoviária.
Aulas extra. Sobe, desce, estaciona. Estaciona, sobe, desce. Trava, arranca. Arranca. Trava. Subidas, descidas, rotundas, cruzamentos, pleno engarrafamento. Realmente, eu tinha andado afastada do trânsito. Preparavam-me, talvez, para conduzir no deserto.
Um dia, foi a vez dos seus sapatos clássicos, gastos mas reluzentes, nos travarem o arranque no sinal vermelho.
- Então, onde está com a cabeça?! A seguir, vire à esquerda.
Virei. E o Senhor Fernando, inclinou a cabeça na direcção do meu ombro, baixou a voz e perguntou, quase sussurando: é segredo?
- Como? Perguntei sem tirar os olhos da estrada.
- É segredo, perguntou, agora, em tom normal.
- É segredo o quê, Senhor Fernando?!
- Que viramos à esquerda.
- Não.
- Então porque não fez pisca?
E sempre que eu me esquecia de dar o sinal indicador de mudança de direcção, o Senhor Fernando perguntava: é segredo? E quando ele não perguntava e eu me esquecia, afirmava: não, não é segredo, Senhor Fernando.
E sorríamos cúmplices, ao ritmo intensivo de um treino exigente. Já nos últimos dias, o Senhor Fernando começou a falar da sua Laurinda, com ternura. E ao sábado de manhã, deixei de ir para a Foz para ir até ao bairro, onde ele morava e ele, da janela do carro, acenava-lhe e dizia-me: é a minha Laurinda.
No dia anterior ao exame, berrou comigo como nunca. E eu, como nunca, nem conseguia por o carro a trabalhar! Na manhã do exame, disse-me: vá lá a fazer isto, caramba! Não esqueça: aqui não há segredos. E não houve.
Fiquei tão bem treinada que, ainda hoje, faço pisca para virar, dentro da minha garagem.
Fá-lo-ia no deserto. Creio. Pois, então, se não é segredo!
Faltavam dez dias para o meu exame de condução. O meu primeiro instrutor – Senhor Silva - era uma homem baixinho, miudinho, de bigodinho, a contar os dias para chegar à reforma. Estava quase.
Usava sapatos Ecco, algumas vezes utilizados para travar os meus ímpetos rodoviários. Na nossa primeira aula fez questão de me explicar teórica e minuciosamente como funcionavam as mudanças e o motor do carro. Depois as aulas foram iguais. Mais rua, menos rua, bem nos arrabaldes da cidade, longe da confusão. Depois, ao fim-de-semana, auto-estrada, via de cintura interna, marginal da Foz do Douro.
Um dia comentei: o meu instrutor, ao sábado, faz-me conduzir até à Foz, manda-me parar o carro e sai. Regressa vinte minutos depois e a aula está no fim. Deve andar indisposto, com algum problema, pensei. Eu enfiada no carro. Ele a caminhar, lentamente, mãos atrás das costas. Entrava, cabisbaixo e dizia: siga.
- Ou conduz muito mal e o instrutor enjoa e tem de ir apanhar ar ou algo está errado nessas paragens na Foz, disseram-me, os funcionários, entre-olhando-se. Parecia um episódio familiar na secretaria da Escola de Condução.
Obviamente que acreditei, piamente, na primeira hipótese. Desanimei.
- Vamos trocar de instrutor. Peça isso, por escrito, que é melhor. Como se fosse iniciativa sua. Está a compreender? Vá por mim. É melhor, dizia-me a Senhora Dona Odete, levantando as sobrancelhas, acima do aro dos óculos.
Acatei o conselho e, na aula seguinte, aparece-me um Senhor Fernando, alto, moreno, todo perfumado. Vivaço nas palavras e nos gestos. Por momentos, achei que íamos entrar numa corrida de automóveis, dada a sua determinação e genica.
-Ora vamos lá. A ver o que vale. Cinto. À direita.
As indicações telegráficas continuaram. Até ao momento de estacionar, numa descida, entre dois carros. Transpirei por tudo que era poro. Não imaginava como fazer aquilo. O carro iria para todo o lado, menos para trás. Menos para aquele lugar balizado por dois automóveis.
- Então! Vamos lá. Quando é o exame?
- Daqui a dez dias, respondi, voz sumida, nervosa.
- Nem daqui a dez semanas! Então não consegue estacionar o carro?
No fim da aula, o Senhor Fernando fez o diagnóstico: eu só sabia andar para a frente. Logo, ou eu estava disposta a um esforço suplementar ou era melhor desistir do exame. Nos dias seguintes fiz a recruta rodoviária.
Aulas extra. Sobe, desce, estaciona. Estaciona, sobe, desce. Trava, arranca. Arranca. Trava. Subidas, descidas, rotundas, cruzamentos, pleno engarrafamento. Realmente, eu tinha andado afastada do trânsito. Preparavam-me, talvez, para conduzir no deserto.
Um dia, foi a vez dos seus sapatos clássicos, gastos mas reluzentes, nos travarem o arranque no sinal vermelho.
- Então, onde está com a cabeça?! A seguir, vire à esquerda.
Virei. E o Senhor Fernando, inclinou a cabeça na direcção do meu ombro, baixou a voz e perguntou, quase sussurando: é segredo?
- Como? Perguntei sem tirar os olhos da estrada.
- É segredo, perguntou, agora, em tom normal.
- É segredo o quê, Senhor Fernando?!
- Que viramos à esquerda.
- Não.
- Então porque não fez pisca?
E sempre que eu me esquecia de dar o sinal indicador de mudança de direcção, o Senhor Fernando perguntava: é segredo? E quando ele não perguntava e eu me esquecia, afirmava: não, não é segredo, Senhor Fernando.
E sorríamos cúmplices, ao ritmo intensivo de um treino exigente. Já nos últimos dias, o Senhor Fernando começou a falar da sua Laurinda, com ternura. E ao sábado de manhã, deixei de ir para a Foz para ir até ao bairro, onde ele morava e ele, da janela do carro, acenava-lhe e dizia-me: é a minha Laurinda.
No dia anterior ao exame, berrou comigo como nunca. E eu, como nunca, nem conseguia por o carro a trabalhar! Na manhã do exame, disse-me: vá lá a fazer isto, caramba! Não esqueça: aqui não há segredos. E não houve.
Fiquei tão bem treinada que, ainda hoje, faço pisca para virar, dentro da minha garagem.
Fá-lo-ia no deserto. Creio. Pois, então, se não é segredo!