segunda-feira, março 14, 2005
A propósito do novo código da estrada - parte I
Tirar a carta de condução foi, sem ironia, das coisas mais difíceis que já fiz na minha vida. Não a tirei aos 18 mas sim muitos, muitos anos depois e em circunstâncias quase secretas que não interessa agora explicar.
Recorrendo à banalidade, a minha vida pode dividir-se num a.c e num d.c – antes da carta e depois da carta.
Antes da carta, por exemplo, fui chamada para um novo emprego a que me tinha candidatado e ao fim de três entrevistas, disseram-me que o lugar era meu.
- Parabéns. Vamos agora acertar o seu vencimento. Contas feitas, não fica a perder, pois, optamos por lhe atribuir uma viatura da empresa, diz-me, caloroso, o director.
Tentei, por diversas vezes interromper, enquanto ele divagava sobre a marca do carro, a rodagem do carro, o motor do carro…
- Desculpe, disse enfim, eu não tenho carta por isso não preciso do carro.
Dez minutos após ter sido demitida fui despedida.
- Inimaginável. Está a brincar comigo! Como é que não tem carta, perguntava o director, braços no ar, colérico. Como é que não tem carta?
Pois em nenhuma linha do meu CV dizia ter carta de condução, expliquei-lhe, advertindo-o para o facto de me estar a gritar. Tinha o direito de se indignar, mas de me gritar, não. Levantei-me para me ir embora.
- Espere aí. Vamos lá negociar isto, novamente. Mas tem de tirar a carta.
Anos, muitos anos mais tarde, após este episódio, em circunstância quase secretas fui tirar a carta. Converteu-se numa questão de honra. E a honra, como sabemos, é uma questão antiga e muito séria na vida das comunidades e das pessoas.
Não foi a condução que me custou. Foi o código. O código da estrada conseguiu deixar a minha auto-estima de rastos. Um dia, no fim da aula, o técnico perguntou: alguém tem dúvidas? Levantei o dedo.
- Porque é que esta cruz, de que nos falou, se chama Cruz de Santo André?
A gargalhada geral, estridente, reduziu-me a alcatrão. Senti-me uma nódoa. Uma nódoa com dúvidas. Mas uma nódoa. Fui aconselhada a não fazer perguntas. Que decorasse. Aquilo era uma questão de decorar. Mais nada.
E, caso não acreditasse em milagres, tinha motivo para me converter.
Lá consegui induzir a cartilha. O vulgar “pisca” é «um sinal indicador de mudança de direcção», o eixo da faixa de rodagem, «é uma linha longitudinal, materializada ou não, que divide uma faixa de rodagem em duas partes, cada uma afecta a um sentido de trânsito», a auto-estrada é «uma via pública destinada a trânsito rápido, com separação física de faixas de rodagem, sem cruzamentos de nível nem acesso a propriedades marginais, com acessos condicionados e sinalizados como tal». E a todas estas definições juntou-se uma panóplia de significados que, naquele período, abalaram a minha vida. Até os meus sonhos. Neles passaram a mover-se automóveis, motociclos, motocultivadores, quadriciclos, ciclomotores, tractores agrícolas, velocípedes, tractocarros e reboques. Até o triciclo da minha infância deixou de ser encantador! A matéria onírica expandira-se. E, literalmente, os meus sonhos eram sinalizados por cruzes de Santo André e afins. Ele era contra-ordenações graves e muito graves. Toda a espécie de coimas e cilindradas superiores e inferiores a 50 cm3! Ele era taras e pesos brutos, pontes, túneis e velocidades. Até ao dia em que me sentei, pela primeira vez, ao volante de um carro – sim, poderia voltar a chamar-lhe simplesmente carro – e, feliz, passei a ponte da Arrábida, comigo ao volante. Quando, a dez dias, do exame de condução descubro que só sabia conduzir… para a frente e mudei de instrutor!
Nota para o Rui Baptista: meu caro blogger-mor claro que não estás sózinho!
Manhã complicada, foi o que foi! Aproveitei hora do almoço para esgalhar este textito! E, a final, quem tem um blog, descobri recentemente, nunca está sózinho! Abraço. Abraços a todos.
Recorrendo à banalidade, a minha vida pode dividir-se num a.c e num d.c – antes da carta e depois da carta.
Antes da carta, por exemplo, fui chamada para um novo emprego a que me tinha candidatado e ao fim de três entrevistas, disseram-me que o lugar era meu.
- Parabéns. Vamos agora acertar o seu vencimento. Contas feitas, não fica a perder, pois, optamos por lhe atribuir uma viatura da empresa, diz-me, caloroso, o director.
Tentei, por diversas vezes interromper, enquanto ele divagava sobre a marca do carro, a rodagem do carro, o motor do carro…
- Desculpe, disse enfim, eu não tenho carta por isso não preciso do carro.
Dez minutos após ter sido demitida fui despedida.
- Inimaginável. Está a brincar comigo! Como é que não tem carta, perguntava o director, braços no ar, colérico. Como é que não tem carta?
Pois em nenhuma linha do meu CV dizia ter carta de condução, expliquei-lhe, advertindo-o para o facto de me estar a gritar. Tinha o direito de se indignar, mas de me gritar, não. Levantei-me para me ir embora.
- Espere aí. Vamos lá negociar isto, novamente. Mas tem de tirar a carta.
Anos, muitos anos mais tarde, após este episódio, em circunstância quase secretas fui tirar a carta. Converteu-se numa questão de honra. E a honra, como sabemos, é uma questão antiga e muito séria na vida das comunidades e das pessoas.
Não foi a condução que me custou. Foi o código. O código da estrada conseguiu deixar a minha auto-estima de rastos. Um dia, no fim da aula, o técnico perguntou: alguém tem dúvidas? Levantei o dedo.
- Porque é que esta cruz, de que nos falou, se chama Cruz de Santo André?
A gargalhada geral, estridente, reduziu-me a alcatrão. Senti-me uma nódoa. Uma nódoa com dúvidas. Mas uma nódoa. Fui aconselhada a não fazer perguntas. Que decorasse. Aquilo era uma questão de decorar. Mais nada.
E, caso não acreditasse em milagres, tinha motivo para me converter.
Lá consegui induzir a cartilha. O vulgar “pisca” é «um sinal indicador de mudança de direcção», o eixo da faixa de rodagem, «é uma linha longitudinal, materializada ou não, que divide uma faixa de rodagem em duas partes, cada uma afecta a um sentido de trânsito», a auto-estrada é «uma via pública destinada a trânsito rápido, com separação física de faixas de rodagem, sem cruzamentos de nível nem acesso a propriedades marginais, com acessos condicionados e sinalizados como tal». E a todas estas definições juntou-se uma panóplia de significados que, naquele período, abalaram a minha vida. Até os meus sonhos. Neles passaram a mover-se automóveis, motociclos, motocultivadores, quadriciclos, ciclomotores, tractores agrícolas, velocípedes, tractocarros e reboques. Até o triciclo da minha infância deixou de ser encantador! A matéria onírica expandira-se. E, literalmente, os meus sonhos eram sinalizados por cruzes de Santo André e afins. Ele era contra-ordenações graves e muito graves. Toda a espécie de coimas e cilindradas superiores e inferiores a 50 cm3! Ele era taras e pesos brutos, pontes, túneis e velocidades. Até ao dia em que me sentei, pela primeira vez, ao volante de um carro – sim, poderia voltar a chamar-lhe simplesmente carro – e, feliz, passei a ponte da Arrábida, comigo ao volante. Quando, a dez dias, do exame de condução descubro que só sabia conduzir… para a frente e mudei de instrutor!
Nota para o Rui Baptista: meu caro blogger-mor claro que não estás sózinho!
Manhã complicada, foi o que foi! Aproveitei hora do almoço para esgalhar este textito! E, a final, quem tem um blog, descobri recentemente, nunca está sózinho! Abraço. Abraços a todos.