quinta-feira, março 31, 2005

 

Gritos

Apesar das chicotadas do alter-ego da coisa, o tempo insiste em trair-nos. Empurra-nos para fora dos carris. De fugida, observo apenas que há dias assim, plenos de coincidências. Dias em que os astros se conjugam para atormentar os homens. E despertar-nos os uivos da insónia. Surge, ao fundo, a gargalhada cínica do útero da terra. Esse riso corrosivo que vai pingando da dança dos elementos. Olhamos em redor e deparamos com a dispersão. Com a imensidão de almas contidas. De gritos agarrados. De orgasmos constrangidos. Com referendos despiciendos. Com tempestades de projectos que servem apenas coisa nenhuma. Arfamos, exaustos. O coração não aguenta. A cabeça também não. Vão doendo os sexos aos amantes.
"Para a semana faço 32 anos e ainda não sei o quero ser", comentava-me uma amiga. Pudera. Alguém saberá? Cavalgamos, apenas, sobre a ténue linha da existência. Eu cá, acho que isto está do avesso. Queria voltar ao berço, em dias assim. Nascer encarquilhado e acabar-me a abocanhar o seio desejado. Antes de me banhar para sempre nos líquidos essencias da mulher primeira. Largar os carris de vez para o refugio dos quadris quentes e lânguidos da materna doçura. Não faria mais sentido?
Eu cá, em dias pintados assim, sei que o quero ser.
Para a amiga, que não precisa de chocolates, roubei umas fumaças à Tabacaria.
Adeus, ó Esteves!

"[...]Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso?
Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio?
Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas
-Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente
(...)
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeiraTalvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira.
Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança,
e o Dono da Tabacaria sorriu"


Tabacarioa, Álvaro Campos

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