segunda-feira, março 21, 2005
Enquanto eles não chegam...
(...) Há poesia em tudo - na terra e no mar - , nos lagos e margens dos rios. Também a há na cidade - não o neguem - é evidente para mim aqui onde me sento: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas ruas, em cada movimento ínfimo, trivial, ridículo de um operário que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um talho.
O meu sentido interno predomina de tal modo sobre os meus cinco sentidos que vejo as coisas desta vida - estou convencido disso - de modo diferente dos outros homens. Existe - existia - para mim um significado riquíssimo em algo tão ridículo como a chave de uma porta, um prego na parede, os bigodes de um gato.
Há, para mim, toda uma plenitude de sugestão espiritual numa galinha com os seus pintos a atravessarem a estrada com ar pimpão. Há para mim um significado mais profundo do que os medos humanos no aroma do sãndalo, nas latas velhas deitadas num monturo, numa caixa de fósforos caída na valeta, em dois papéis sujos que,num dia ventoso, rodopiam e se perseguem pela rua abaixo.
Pois a poesia é assombro, admiração, como de um ser caído dos céus que toma plena consciência da sua queda, espantado com o que vê. Como alguém que conhecesse a alma das coisas e se esforçasse por recordar esse conhecimento, lembrando-se que não era assim que as conhecia, não com estas formas e nestas condições, mas não se lembrando de mais nada.
Fernando Pessoa in Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, Assírio & Alvim
O meu sentido interno predomina de tal modo sobre os meus cinco sentidos que vejo as coisas desta vida - estou convencido disso - de modo diferente dos outros homens. Existe - existia - para mim um significado riquíssimo em algo tão ridículo como a chave de uma porta, um prego na parede, os bigodes de um gato.
Há, para mim, toda uma plenitude de sugestão espiritual numa galinha com os seus pintos a atravessarem a estrada com ar pimpão. Há para mim um significado mais profundo do que os medos humanos no aroma do sãndalo, nas latas velhas deitadas num monturo, numa caixa de fósforos caída na valeta, em dois papéis sujos que,num dia ventoso, rodopiam e se perseguem pela rua abaixo.
Pois a poesia é assombro, admiração, como de um ser caído dos céus que toma plena consciência da sua queda, espantado com o que vê. Como alguém que conhecesse a alma das coisas e se esforçasse por recordar esse conhecimento, lembrando-se que não era assim que as conhecia, não com estas formas e nestas condições, mas não se lembrando de mais nada.
Fernando Pessoa in Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, Assírio & Alvim