quinta-feira, dezembro 16, 2004

 

Rumar ao Sul

Deve ser do frio. Ou do estado do país. Mas últimos dias só me apetece rumar ao Sul.

“Welcome to India, sir!”





É praticamente uma verdade científica: a eficiência de um taxista de Bombaim mede-se pelo número de amolgadelas do seu carro. Um Fiat amarelo e preto com um farolim pendurado, portas riscadas e guarda-lamas amassado é a prova irrefutável de que o condutor é capaz de enfrentar com desembaraço o trânsito insano de Colaba à hora de ponta. Não interessa se o condutor vai desrepeitar todas as regras de trânsito (em Bombaim toda a gente desrepeita as regras de trânsito...), se vai buzinar como um louco durante todo o percurso, ou se o piso do carro tem tantos buracos que se consegue ver o alcatrão. O que é importante é que são quatro da tarde, o aeroporto de Bombaim derrete sob um sol impiedoso e nós com ele, e que o ar se transformou num manto diáfano de poeira e fumo, que se pode cortar à faca e que cheira como um animal atropelado há 15 dias à beira de uma via rápida.
O táxi de Sandeeep prometia. A porta do condutor soldada para não cair, o “capot” com mais mossas do que a cara de um pugilista depois de 15 “rounds” com Mike Tyson e um altar de Lord Ganesh aparafusado ao “tablier” eram a garantia de uma viagem cheia de emoções até Apolo Bunder, até à zona dos ricos e dos turistas, dos hotéis com ar condicionado e vista para o Gate of India. E depois havia Sandeep. Marca de casta na testa, bigode enrolado nas pontas e um sorriso aberto. Atravessar Bombaim em hora de ponta, carregado com quatro turistas branquelas e meio zonzos pelo jet-lag e um número incontável de malas? “No problem, sir! Welcome to India”.
Quase todos os livros de V.S. Naipaul sobre a Índia começam no aeroporto internacional de Bombaim e é fácil perceber porquê. É ali (mais até do que em Dehli) que começa a Índia. Não a “Índia do milhão de aldeias” de que falava Gandhi, mas a Índia das grandes metrópoles. Bombaim tem camadas, como a cebolas, e o táxi de Sandeep atravessou-as a todas, aos ziguezagues e aos tombos, num coro ensurdecedor de buzinadelas e imprecações em hurdu, hindi, konkani e até inglês. E um e outro grito de pânico em português, claro.
Sandeep rompeu pelo meio do bairro da lata que asfixia o aeroporto, assustou mulheres que lavavam a roupa à porta das barracas, perturbou o sossego dos homens que faziam as suas abluções no passeio, desembocou no meio da avenida congestionada como um bandarilheiro numa praça de touros, driblou daqui, tenteou dali, empurrou com um ligeiro toque de guarda-lamas um riquexó mais preguiçoso, ignorou o sinal vermelho junto ao “Soppers Stop” deixando para trás uma multidão desconsolada de mendigos, passou uma tangente ao polícia sinaleiro de Colaba e travou por fim junto ao West End Hotel. “You are home, sir”! Nada mais certo. Estamos em casa, ali junto ao hospital, perto do mar viscoso que brilha no escuro, abrigados pela copa das árvores que escurece a rua e protege as gentes, embalados pelos gritos dos corvos e os cânticos dos fiéis a Rama, sentindo nascer desejos de “gulab jam”, “mangolas” e arroz “biriani”. A Índia entra-nos no coração mais depressa do que o táxi de Sandeep leva para romper pelas colinas de Malabar acima. E deixa cicatrizes que duram para sempre. Felizmente.

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