quarta-feira, dezembro 15, 2004
Peni-Penny em Inhambane
O Ma-Schamba celebrou um ano de existência. Aproveitando o pretexto andei pelos arquivos do blog de JPT a reler posts
antigos, e dei por mim de repente a rebentar de saudades de Moçambique. Não vou massacrar-vos com mais lugares comuns sobre o sol, o calor, os cheiros e as pessoas. África dispensa mais literatura barata. Não conheço nenhum soneto que possa rivalizar com a cadência do mar do Tofo. Hoje quero apenas falar-vos de Peni-Penny.
Peni-Penny... conhecem-no? Provavelmente não. Eu também não sonhava sequer que ele existia até ao dia em que o destino nos colocou frente-a-frente. Ele em cima de um palco, manejando a guitarra como se se tratasse de uma metralhadora; eu encerrado entre quatro paredes, com algodões enfiados nos ouvidos e uma raiva homicida a brotar-me do peito. Infelizmente o embate foi longo, demasiado longo, penosamente longo, e terminou com o triunfo absoluto de Peni-Penny. Maldito Peni-Penny!
O dia em que Peni-Penny quase me levou à loucura até tinha começado bem. O sol acabara de nascer quando o mecânico da Avenida Karl Marx surgiu na casa da Matola ao volante do velhinho Toyota, que na véspera tinha avariado junto ao Polana, em Maputo. Tinhamos dado o carrinho por perdido, julgando precipitadamente que a avaria era irremediável, mas afinal o estrago resumia-se a uma rachadura na tampa do distribuidor. Com ajuda de um secador de cabelo e de um rolo de fita adesiva o mecânico "marxista" pôs o carro novamente a rolar.
Arrancámos logo a seguir para Inhambane, comigo a dormir no banco do passageiro, tentando recuperar de uma noite passada a andar a pé entre Maputo e a Matola. Acordei com o primeiro furo ainda antes do desvio para Bilene. Na mala havia um pneu sobressalente mas não havia macaco. Por isso tivemos que levantar o carro em peso com ajuda de umas pessoas que iam para a missa. Mandámos reparar o pneu mais à frente e comprámos um macaco enferrujado, que se revelou muito útil quando surgiu o segundo furo. Mas já serviu de pouco quando ocorreu o terceiro. Valeu-nos uma carrinha de distribuição dos preservativos “Jeito”, que me deu uma boleia até à povoação mais próxima. "Meu irmão, é melhor que fure o pneu do que a camisinha", filosou o condutor.
Regressei a pé ao Toyota, fazendo rolar os dois pneus acabados de reparar, sob um sol impiedoso que derretia o alcatrão. Os meus colegas de viagem descansavam à sombra de um cajuzeiro, já sem forças para afastarem sequer as moscas.
O nosso aspecto à chegada a Inhambane era assustador: dois branquelas de cabelos desgrenhados, lábios gretados pela sede, e um africano com cara de poucos amigos e uma voz de trovão. Com uma palavrinha ali, e uma cervejinha acolá, desencantámos uma casa junto ao Liceu. Na Gahia, deserta àquela hora, arranjou-se umas postas de peixe-serra. E lá cabeceámos de sono no Xiphefo, enquanto Chiquinho Guita teorizava sobre as virtudes de misturar cerveja com tequilha. Era quase meia-noite quando, finalmente, me preparei para dormir. E foi então que Peni-Penny entrou em cena.
Primeiro ouvi passos e risos abafados. Espreitei pela janela e vi um mar de gente que se dirigia ao campo de futebol, meia centena de metros mais abaixo, no meio de uma escuridão total. A música jorrou de repente, como se alguém tivesse aberto uma torneira. Tambores, coros e uma guitarra eléctrica estridente que cortava a noite em duas. E então Peni-Penny desatou a cantar. Às duas da manhã ele ainda cantava e eu trepava pela paredes; às quatro eu tinha olheiras do tamanho de pratos de sopa e ele cantava; às seis eu hesitava entre o suícidio e o impulso de o esganar e ele cantava. Desesperado, fugi para a praia do Tofo, onde passei o dia a dormir dentro do Toyota. À despedida de Inhambane, um engraçadinho ofereceu-me uma cassete do Peni-Penny. Ainda a conservo, mas nunca a ouvi. Maldito Peni-Penny!
antigos, e dei por mim de repente a rebentar de saudades de Moçambique. Não vou massacrar-vos com mais lugares comuns sobre o sol, o calor, os cheiros e as pessoas. África dispensa mais literatura barata. Não conheço nenhum soneto que possa rivalizar com a cadência do mar do Tofo. Hoje quero apenas falar-vos de Peni-Penny.
Peni-Penny... conhecem-no? Provavelmente não. Eu também não sonhava sequer que ele existia até ao dia em que o destino nos colocou frente-a-frente. Ele em cima de um palco, manejando a guitarra como se se tratasse de uma metralhadora; eu encerrado entre quatro paredes, com algodões enfiados nos ouvidos e uma raiva homicida a brotar-me do peito. Infelizmente o embate foi longo, demasiado longo, penosamente longo, e terminou com o triunfo absoluto de Peni-Penny. Maldito Peni-Penny!
O dia em que Peni-Penny quase me levou à loucura até tinha começado bem. O sol acabara de nascer quando o mecânico da Avenida Karl Marx surgiu na casa da Matola ao volante do velhinho Toyota, que na véspera tinha avariado junto ao Polana, em Maputo. Tinhamos dado o carrinho por perdido, julgando precipitadamente que a avaria era irremediável, mas afinal o estrago resumia-se a uma rachadura na tampa do distribuidor. Com ajuda de um secador de cabelo e de um rolo de fita adesiva o mecânico "marxista" pôs o carro novamente a rolar.
Arrancámos logo a seguir para Inhambane, comigo a dormir no banco do passageiro, tentando recuperar de uma noite passada a andar a pé entre Maputo e a Matola. Acordei com o primeiro furo ainda antes do desvio para Bilene. Na mala havia um pneu sobressalente mas não havia macaco. Por isso tivemos que levantar o carro em peso com ajuda de umas pessoas que iam para a missa. Mandámos reparar o pneu mais à frente e comprámos um macaco enferrujado, que se revelou muito útil quando surgiu o segundo furo. Mas já serviu de pouco quando ocorreu o terceiro. Valeu-nos uma carrinha de distribuição dos preservativos “Jeito”, que me deu uma boleia até à povoação mais próxima. "Meu irmão, é melhor que fure o pneu do que a camisinha", filosou o condutor.
Regressei a pé ao Toyota, fazendo rolar os dois pneus acabados de reparar, sob um sol impiedoso que derretia o alcatrão. Os meus colegas de viagem descansavam à sombra de um cajuzeiro, já sem forças para afastarem sequer as moscas.
O nosso aspecto à chegada a Inhambane era assustador: dois branquelas de cabelos desgrenhados, lábios gretados pela sede, e um africano com cara de poucos amigos e uma voz de trovão. Com uma palavrinha ali, e uma cervejinha acolá, desencantámos uma casa junto ao Liceu. Na Gahia, deserta àquela hora, arranjou-se umas postas de peixe-serra. E lá cabeceámos de sono no Xiphefo, enquanto Chiquinho Guita teorizava sobre as virtudes de misturar cerveja com tequilha. Era quase meia-noite quando, finalmente, me preparei para dormir. E foi então que Peni-Penny entrou em cena.
Primeiro ouvi passos e risos abafados. Espreitei pela janela e vi um mar de gente que se dirigia ao campo de futebol, meia centena de metros mais abaixo, no meio de uma escuridão total. A música jorrou de repente, como se alguém tivesse aberto uma torneira. Tambores, coros e uma guitarra eléctrica estridente que cortava a noite em duas. E então Peni-Penny desatou a cantar. Às duas da manhã ele ainda cantava e eu trepava pela paredes; às quatro eu tinha olheiras do tamanho de pratos de sopa e ele cantava; às seis eu hesitava entre o suícidio e o impulso de o esganar e ele cantava. Desesperado, fugi para a praia do Tofo, onde passei o dia a dormir dentro do Toyota. À despedida de Inhambane, um engraçadinho ofereceu-me uma cassete do Peni-Penny. Ainda a conservo, mas nunca a ouvi. Maldito Peni-Penny!